segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Rouba-se...(artigo de leitura "obrigatória")


José Luís Peixoto-Revista Visão
Aquilo que mais me choca é, neste país, uma agência imobiliária tão conhecida, ter ladrões deste nível. Saber que em todas as atividades há maus profissionais não desculpa tudo
Decidi comprar um apartamento neste país. Tenho quase 40 anos, não devo nada a ninguém, achei que podia. Não me refiro a extravagâncias, falo de um T2 pequeno mas pago a pronto. Escrevo num tempo em que há milhares de casas à venda. Chega-se a uma rua portuguesa, olha-se para a fachada de um prédio de habitação e, quase sempre, em qualquer andar, há um ou mais letreiros, vende-se, há números de telefone a pedirem que se lhes ligue.
No meu quotidiano, lido com diversos imateriais, palavras e outros mistérios intangíveis. Nesse aspeto, é como se trabalhasse no contrário da construção civil. Talvez por isso, um apartamento é algo que me impressiona. Durante a minha adolescência, duvidei muitas vezes que algum dia chegasse a ser tão adulto ao ponto de comprar uma casa. Não me imaginava nesse papel, acreditava que a idade era um vício pequeno-burguês.
Debaixo dos restos dessa ilusão, comecei a visitar apartamentos que pareciam sempre mais tristes ao vivo do que nas descrições ao telefone, nas frases de abreviaturas do jornal ou nas fotografias da internet. O cheiro dessas casas era triste, frio, cinzento. Assim, criei a rotina de encontrar um homem sozinho à frente da porta de um prédio, cumprimentá-lo com a falta de investimento das relações entre desconhecidos, entrar com ele para uma casa vazia e trocar lugares-comuns com que ambos concordávamos sobre casas de banho, cozinhas, marquises, a área, a vista, a humidade.
Por fim, quando achei uma casa que merecia uma oferta, tive de ganhar coragem. Sabia que poderia ser aceite. Ainda assim, como me ensinaram, comecei abaixo do que estava disposto a dar, esperando uma normal contraproposta. Esse era um apartamento que me tinha sido mostrado por um agente imobiliário, de gravata. Como se esperasse que os dados parassem de rolar, a resposta chegou logo no dia seguinte. A proprietária tinha aceite, sem regatear um euro. Cansado de casas, cansado de pesar vantagens e desvantagens, entusiasmei-me. O indivíduo da agência imobiliária também parecia entusiasmado, tanto que estava cheio de pressa para fazer o contrato de promessa de compra e venda. Ficou marcado para daí a dois dias. Estou naquela idade em que a maioria dos agentes imobiliários são mais novos do que eu e, por isso, não estranhei.
Ele tinha insistido bastante para que pagasse a entrada com dois cheques. Segundo ele, dava muito jeito à senhora. Um dos cheques representava exatamente 10% do valor do negócio. Foi só no banco, enquanto esperava, que comecei a pensar nisso. Tinha o nome da proprietária escrito num papelinho e decidi fazer uma busca na internet com meu telemóvel. Os únicos resultados foram documentos do tribunal que diziam respeito ao filho, a darem conhecimento de que este tinha faltado à presença do juiz em processos relativos a falsificação de documentos, burla, tráfico de estupefacientes e posse ilegal de armas. Uma das suas últimas moradas conhecidas era aquele apartamento que me preparava para comprar.
Foi como se o próprio tempo abrandasse e mudasse de cor. Até aí, tinha imaginado o melhor. A partir daí, imaginei o pior. Liguei ao advogado que me ajudou com o livro da Coreia do Norte e em tantas outras ocasiões. Conclusão resumida do drama judicial: o apartamento era propriedade da senhora e do seu falecido marido, o que significava que o filho, mesmo que em paradeiro desconhecido, também era dono de uma parte. Sem ele, o contrato poderia ter sido feito, a casa poderia mesmo ter sido escriturada mas não a teria conseguido registar e acabaria sem o dinheiro e sem o apartamento. O filho estava tão desaparecido que se preparavam para nunca o mencionar.
Mesmo com o advogado em campo, o agente imobiliário não desistiu em nenhum momento de tentar que o negócio ou, pelo menos, o contrato fosse avante. Em qualquer um dos casos, receberia a sua comissão.

O dinheiro que amealhei durante anos não chegou a sair da minha conta. Muito obrigado, Google. Aquilo que mais me choca é, neste país, uma agência imobiliária tão conhecida, ter ladrões deste nível. Saber que em todas as atividades há maus profissionais não desculpa tudo. Neste preciso país e neste preciso momento, o apartamento continua lá, com um letreiro da agência imobiliária na janela, vende-se, à espera de outro.

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