Baptista-Bastos,
DN
Tudo o que sou e sei
devo-o à escola pública, à abnegada dedicação de professores, cujas memórias
retenho com emoção e saudade. Não é mau ter saudade: é manter o lastro de uma
história que se entrecruza com a dos outros, de muitos outros. É sinal de uma
pertença que transforma as relações em laços sociais, frequentemente para toda
a vida. Da primária ao secundário, e por aí fora, a presença desses homens e
dessas mulheres foi, tem sido, a ética e a estética de uma procura do próprio
sentido da vida. O débito que tenho para com eles é insaldável. A paciência
solícita, o cuidado e a atenção benevolente do tratamento dispensado aos miúdos
desbordavam de si mesmos para ser algo de grandioso. Ah! Dona Odete, como me
lembro de si, da sua beleza mítica, da suavidade da sua voz, a ensinar-nos que
o verbo amar é transitivo. Também lhe pertenço, e àqueles que falavam das
coisas vulgares das ruas e dos bairros, da cadência melancólica das horas e dos
dias, com a exaltação de quem suspira uma reza ou compõe uma épica.
Depois, foram os meus
três filhos, instruídos em cantinas escolares republicanas, e aí estão eles, no
lado justo das coisas, nesse regozijo dos sentidos que obriga ao grito e à
cólera quando a repressão se manifesta. Escrevo destas coisas banais para
designar o verdete e o vómito que me provocam o ministro Crato e o seu sorriso
de gioconda de trazer por casa, quando, por sistema e convicção, destrói a
escola republicana, aduzindo-lhe, com rankings e estatísticas coxas, a falsa
menoridade da sua acção. Este ministro é um mentiroso, por omissão deliberada e
injunção de uma ideologia de que é paladino. Não me interessa se abjurou dos
ideais de juventude; se tripudiou sobre "O Eduquês", um ensaio
dignificante; ou se mandou às malvas o debate que manteve com o professor
Medina Carreira, num programa da SIC Notícias. Sei, isso sim, que os homens de
bem devem recusar apertar-lhe a mão.
Ele não diz que a
escola pública está aberta a toda a gente, e que a escola privada (com dinheiro
nosso, dos contribuintes) é extremamente selectiva. Oculta que a escola pública
acolhe os miúdos com fome, de pais desempregados, de famílias disfuncionais e
desestruturadas, que vivem em bairros miseráveis e em casas degradadas,
entregues a si mesmos e à raiva que os alimenta.
Não diz que a escola
pública é a imagem devolvida da sociedade que ele próprio prognostica e
defende. Uma sociedade onde uma falsificada elite, criada nos colégios, tende a
manter-se e a exercer o domínio sobre os outros. Oculta, o Crato, que, apesar
desse inferno sem salvação, fixado nos rankings numa humilhação atroz, ainda
surgem alunos admiráveis, com a tenacidade e a dimensão majestosa de quem
afronta a injúria e a desgraça. E esta imprensa, muito solícita em noticiar
trivialidades, também encobre a natureza real do grande problema. Tapa os ouvidos,
os olhos e a boca como o macaco da fábula.
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