José
Luís Peixoto-Revista Visão
Aquilo
que mais me choca é, neste país, uma agência imobiliária tão conhecida, ter
ladrões deste nível. Saber que em todas as atividades há maus profissionais não
desculpa tudo
Decidi
comprar um apartamento neste país. Tenho quase 40 anos, não devo nada a
ninguém, achei que podia. Não me refiro a extravagâncias, falo de um T2 pequeno
mas pago a pronto. Escrevo num tempo em que há milhares de casas à venda.
Chega-se a uma rua portuguesa, olha-se para a fachada de um prédio de habitação
e, quase sempre, em qualquer andar, há um ou mais letreiros, vende-se, há
números de telefone a pedirem que se lhes ligue.
No
meu quotidiano, lido com diversos imateriais, palavras e outros mistérios
intangíveis. Nesse aspeto, é como se trabalhasse no contrário da construção
civil. Talvez por isso, um apartamento é algo que me impressiona. Durante a
minha adolescência, duvidei muitas vezes que algum dia chegasse a ser tão
adulto ao ponto de comprar uma casa. Não me imaginava nesse papel, acreditava
que a idade era um vício pequeno-burguês.
Debaixo
dos restos dessa ilusão, comecei a visitar apartamentos que pareciam sempre
mais tristes ao vivo do que nas descrições ao telefone, nas frases de
abreviaturas do jornal ou nas fotografias da internet. O cheiro dessas casas
era triste, frio, cinzento. Assim, criei a rotina de encontrar um homem sozinho
à frente da porta de um prédio, cumprimentá-lo com a falta de investimento das
relações entre desconhecidos, entrar com ele para uma casa vazia e trocar
lugares-comuns com que ambos concordávamos sobre casas de banho, cozinhas,
marquises, a área, a vista, a humidade.
Por
fim, quando achei uma casa que merecia uma oferta, tive de ganhar coragem.
Sabia que poderia ser aceite. Ainda assim, como me ensinaram, comecei abaixo do
que estava disposto a dar, esperando uma normal contraproposta. Esse era um
apartamento que me tinha sido mostrado por um agente imobiliário, de gravata.
Como se esperasse que os dados parassem de rolar, a resposta chegou logo no dia
seguinte. A proprietária tinha aceite, sem regatear um euro. Cansado de casas,
cansado de pesar vantagens e desvantagens, entusiasmei-me. O indivíduo da
agência imobiliária também parecia entusiasmado, tanto que estava cheio de
pressa para fazer o contrato de promessa de compra e venda. Ficou marcado para
daí a dois dias. Estou naquela idade em que a maioria dos agentes imobiliários
são mais novos do que eu e, por isso, não estranhei.
Ele
tinha insistido bastante para que pagasse a entrada com dois cheques. Segundo
ele, dava muito jeito à senhora. Um dos cheques representava exatamente 10% do
valor do negócio. Foi só no banco, enquanto esperava, que comecei a pensar
nisso. Tinha o nome da proprietária escrito num papelinho e decidi fazer uma
busca na internet com meu telemóvel. Os únicos resultados foram documentos do
tribunal que diziam respeito ao filho, a darem conhecimento de que este tinha
faltado à presença do juiz em processos relativos a falsificação de documentos,
burla, tráfico de estupefacientes e posse ilegal de armas. Uma das suas últimas
moradas conhecidas era aquele apartamento que me preparava para comprar.
Foi
como se o próprio tempo abrandasse e mudasse de cor. Até aí, tinha imaginado o
melhor. A partir daí, imaginei o pior. Liguei ao advogado que me ajudou com o
livro da Coreia do Norte e em tantas outras ocasiões. Conclusão resumida do
drama judicial: o apartamento era propriedade da senhora e do seu falecido
marido, o que significava que o filho, mesmo que em paradeiro desconhecido,
também era dono de uma parte. Sem ele, o contrato poderia ter sido feito, a
casa poderia mesmo ter sido escriturada mas não a teria conseguido registar e
acabaria sem o dinheiro e sem o apartamento. O filho estava tão desaparecido
que se preparavam para nunca o mencionar.
Mesmo
com o advogado em campo, o agente imobiliário não desistiu em nenhum momento de
tentar que o negócio ou, pelo menos, o contrato fosse avante. Em qualquer um
dos casos, receberia a sua comissão.
O
dinheiro que amealhei durante anos não chegou a sair da minha conta. Muito
obrigado, Google. Aquilo que mais me choca é, neste país, uma agência
imobiliária tão conhecida, ter ladrões deste nível. Saber que em todas as
atividades há maus profissionais não desculpa tudo. Neste preciso país e neste
preciso momento, o apartamento continua lá, com um letreiro da agência
imobiliária na janela, vende-se, à espera de outro.
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